Crítica: o teatro em movimento da Cia. Boemia Literária

Por Jessé Duarte

Cia. Boemia Literária de Contagem (MG) passou por Bichinho com seu espetáculo, “Manifesto pelo direito a poesia”. 

O domingo do dia 13 de janeiro teve inicio com uma modesta placa colocada em frente a Nômade Artes e Ofícios, alertando as pessoas que passavam pelo centro do Bichinho: “teatro hoje – manifesto pelo direito a poesia”. Em seguida um cortejo dos atores com instrumentos musicais também alertava o publico. Somando a divulgação do espaço, o convite despertou curiosidade e surtiu efeito. Pouco do espetáculo, algumas dezenas de espectadores juntavam-se em frente a casa, muitas das quais nunca haviam assistido uma peça de teatro.

O espetáculo começa ainda na porta, pegando todos de surpresa. Um prologo irônico avisa dos riscos que virão e solicita que as crianças sejam protegidas e tiradas da linha de tiro e, conduzindo a narrativa, resinifica o local como a sede de uma grande imprensa que será invadida pelo o controverso direito de dizer a verdade. Para isso o público é armado com livros, de mão em mão os atuantes entregam e dizem “essa é nossa arma”. O gesto simples causa um silêncio e uma comoção, fazendo uma nítida ligação com a realidade brasileira atual, onde os livros e a educação são submetidos a violência do descaso e a tentativa de armar a população contra si mesma. Isso fica ainda mais latente quando tiros começam a ser disparados contra o público que “invade” o quintal da casa. O público reage atirando os livros contra os tiros. A repressão recua mas o público assiste um personagem ser abatido e arrastado para dentro casa de onde em seguida sai outro personagem simbolizando uma espécie de operário da cena, que opera a luz e organiza o espaço.

Após a tensão das cenas de conflito, o operário traz uma leveza em sua narrativa. Em uma caixa ele tira objetos aprendidos e conta uma história para cada um, até pegar um Pinho Sol que serve de ligação para a cena seguinte: um tribunal onde um poeta é julgado por invadir a imprensa. A cena segue estabelecendo uma linha tênue entre a dramaticidade da encenação e o discurso distanciado da poesia, algumas vezes declamada como argumento de defesa do poeta frente ao procurador/inquisidor ou ao juiz guardião da verdade e da moralidade.

O desfecho do tribunal conduz os olhares e os sentidos para a expectativa desconfortante de uma cena de execução da pena do poeta, que indica tortura e morte. O posicionamento em arena ajuda a aumentar a expectativa, até a entrada de um personagem que distância e quebra a cena dramática. Falando diretamente com o público e atores, ele explica que o poeta foi interpretado por mais de uma atuante e questiona ser isso tudo era preciso. Construindo uma narrativa que remete a uma negociação entre o mercado da industria literária e um escritor, o personagem coringa mostra que os poetas devem pagar para ser publicados, mas pelo auto valor e absurdo, os poetas preferem auto publicação e a distribuição de livretos como ambulantes. A cena parece descontextualizada se olhada pela ótica dramática, mas quando assistida com um olhar do teatro não linear, pode ser compreendida dentro de um todo, onde inicio, meio e fim existem, mas podem não estar necessariamente nesta ordem.

Mais uma vez o público é conduzido para a frente da casa, onde um barzinho é usado como espaço para a ultima cena, pode-se se dizer: a cena de um “manifesto pelo direito a poesia”. Os atores ocupam o local rompendo a entretenimento com declamações e provocações, vendendo livretos e conversando de forma direta com os espectadores.

“Manifesto pelo direito a poesia”, pode ser visto como uma obra em movimento. O que interessa não é tanto a força do drama diante de uma plateia parada, mas sim a força da intervenção que, por muitos momentos, instigam o público a tomar uma decisão diante da cena. Essa característica do teatro épico é explorada para mover o espetáculo e o discurso das atrizes e atores que podem ou não alterar a realidade, simbolicamente expressa nas cenas.

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Jessé Duarte é escritor e encenador mineiro, autor dos livros “Colorido só por fora: contos periféricos”, “Estórias que só existem quando contadas” e “Bichinho”.